sábado, 4 de abril de 2009

Sobre as sombras a Sala Yago em Compostela

Os passos são uma visita que retorna os tempos, os posterga e imagina o que foi e o que podia ter sido, o que pode ser e o que será.
Também o cinema e teatro.
A sala Yago faz parte de passos e caminhos, do esquecido, do que talvez passou, da memória de estirpes e sonhos e também de amores fechados no tempo aberto e de ilusões e sonhos colectivos para além de um título de propriedade.
A história é comum até onde é e insólita e desde então fica na memória das utopias empenhadas.
A sala Yago está em Compostela, dizem que no centro do centro, na Rua do Vilar. Nasceu em 1946 e foi cinema censurado, cinema aberto, casa de amores clandestinos, de tardes especiais, de noivos melancólicos, de meninos com moeda na mão, de meninas com perspectiva livre. Tinha um “galinheiro especial” e uma solidão mágica na que, mesmo se o menos importante era a fita, o filme trazia cena, música, luz de sombra para o espectáculo maravilhoso dos dezanove anos, quando as mãos e os lábios são mais perceptivos que os próprios olhares. Mas quiçá o dono da velha varinha e dos rolos de imagens, o Senhor Rodríguez, escreveu já no livro da memória que as gerações perpetuam os seus próprios amores escondidos de povo grande e cidade pequena, onde todos se conhecem sob a luz amarela, e o transcorrer da história que sempre pode ser.
Lembro e confundo, confundo e lembro… quero situar neste cinema a projecção acarinhada de A Rosa Púrpura do Cairo que voltaria em Paris muitos, muitos anos depois, mas que nunca ficou no esquecimento, e antes, muito antes, as primeiras visões de aventuras que tornavam possíveis as fugidas das normas e do quotidiano.
Sim, o Cinema Yago está na minha história, mas não apenas na minha.
E sempre há sonhadores valentes que acreditam… Os monicreques de Cachirulo, O Teatro do Noroeste, Eduardo Alonso, Jorge Rey, Luma Gómez, o Kukas –o mestre particular da minha infância, mestre de rebeliões e anarquias, fotógrafo dos rostos impossíveis, pintor das palavras pequeninas- nomes e olhos de brilho e palavras de carícia pública, estavam aí ou apareceram e, quando os cinemas velhos guardavam em luz de obra todos os fantasmas reflectidos, eles aliaram-se com os personagens e tornaram-se corsários das ilhas livres, senhores do castelo, lanternas mágicas, domingos da sessão matutina dos sorrisos, vozes escolares, odor a incenso, jogos de sombras, cantos, encantos. Tudo retornou vida em 1998, quando a Sala Yago abriu com o jogo de prestidigitador à vista de teatro, títeres, cinema independente, ciclos… coração de tantos corações. E foi possível ao longo de nove anos, e foi impossível esquecer que a vida lateja longe de naufrágios desde então.
Apenas documentos judiciais de um desses enredos alheios aos seus navegantes, tão feios e complexos que nem sequer pagam a pena para estória, para além das actas judiciais que contam de uma empresa gestora quebrada com a que Cachirulo tinha o seu contrato de cessão e uns proprietários que desejaram aproveitar a quebra dos seus velhos sócios e recuperar paredes, sem tomar em conta as notas de concórdia, os mundos alternativos que pariram e que já não lhes pertencem… mas isso, por enquanto, não está nas leis nem é quantificado nos processos.
A Sala Yago ainda tem nome, protesta e sombra. As suas paredes negam-se a mudar de rua e propriedade. Por isso ainda ecoa e ainda existe.
Um destes dias vou recitar os versos da existência sob os arcos, ao pé das portas encerradas e convocarei músicos e actores, sonhadores todos, público e amantes… por que não? Em Junho a Solidão cumpre dois anos de triste moradora.

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