sexta-feira, 3 de abril de 2009

Mulheres

Caminhar em solidão dá a perspectiva distanciada do próprio e do alheio na máxima apropriação dos panoramas. Por isso necessito essa medida nalgum momento do dia e em qualquer circunstância.
Mais difícil é nas viagens colectivas deixar ao parceiro ou ao grupo inteiro para ser dona de um tempo.
Nessas “fugidas” acontecem as coisas mais esquisitas, que poderíamos contar e rir uma vez superados os momentos de confusão que às vezes se propiciam… e contaremos quiçá nalguma ocasião, mas por enquanto ficamos pelo tempo das decisões, das imposições e das mulheres.
A última viagem com grande grupo deu-se há poucos dias, numa dessas expedições magníficas com crianças, adolescentes e imaginários adultos que nos tornamos capitães múltiplos, cuidadores, informantes, proibidores, parceiros, multi-ideias, especialistas em tudo e todo-poderosos organizadores… sarilhos nos que entramos sozinhos, vivemos demasiado acompanhados e dos que saímos com saudades e lembranças, retornados aos próprios passados. Como sempre, a necessidade do tempo a só foi improvisando espaços em cada paragem rumo ao Al-Andalus e, desta vez, a responsabilidade artística dos mais de setenta actores e actrizes muito jovens, mas muito espertos e autónomos como é próprio do grémio, assim como o bom número de pessoas às que se nos supunha a seriedade mais pelos anos consumados que pelas vontades de assenta-la que os acompanhávamos, tornou possíveis e compreensíveis estas fugidas breves e produtivas as solidões achadas.
Foi numa delas, na cidade de Toledo, trás a visita à loja perdida de um comerciante marroquino que oferecia formosos orientes e na que recuperei o narguilé perdido numa estranha noite na Terra Verde; também trás um café em ambientes retornados a lembranças da última estadia com aquele olhar de amor que acompanhava e deixou as marcas mais profundas (que também poderão ser motivo de escrita nalguma altura talvez), o caso é que ali foi o retrato meditado e possível nos séculos e nos retornos: uma manhã feminina escrevia história múltipla nas ruas: idades, pesos, passos, cruzamentos, aspectos, estilos, crenças, atitudes, olhares, vestimentas… tudo diferente… mas duas daquelas mulheres partilhavam uma mesma touca sobre as cabeças. Num momento caminharam próximas e distantes, depois demonstraram os seus ritmos e destinos comuns na separação e a fotografia não chegou no primeiro tempo, porque quase nunca é instantânea, mas foi suficiente para captar as semelhanças mais diferentes: uma freira católica e uma senhora muçulmana mostravam a mesma disposição a cobrir os cabelos com um pano da mesma cor, de feitura e tecido emparentados.
As raízes e os mundos voltavam revoltados sobre as pedras de uma cidade que contemplara a convivência de três religiões e um mesmo mundo.
Espaventos, questão, escândalo, posicionamentos, lutas, diferencias, regulamentos… que aquelas mulheres ultrapassavam com a sua mesma simultaneidade na paz, no anonimato, na normalização. Apenas eu parecia perceber qualquer coisa estranha em meio de uma sociedade que vivia a realidade da coexistência na mais absoluta quotidianidade, e eu pretendia apenas captar os paralelos, por isso nem devia ser tomada em conta.
Afinal parece ser possível, parece que pode ser uma mesma a imposição ou a liberdade, mas parece que não andamos tão longe as umas das outras, que afinal estamos na mesma dicotomia sapiens sobre mostrar ou ocultar partes do nosso corpo e da nossa alma.
… E eu embuçava-me trás um caderno e uma câmara… Mas todas sabíamos tocar o vento com a mesma precisão de um ritmo místico e de um tempo profano por viver.

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